Para 2022, Ministério da Saúde perde 20% do orçamento de 2021

Para 2022, Ministério da Saúde perde 20% do orçamento de 2021

Ao longo da pandemia de coronavírus, o Sistema Único de Saúde (SUS) vacinou cerca de 170 milhões de pessoas e salvou a vida de milhares de brasileiros  e ganhou mais relevância entre a sociedade. Ainda assim, o orçamento para 2022 do Ministério da Saúde — o principal financiador do SUS — sofreu redução de 20%, passando dos R$ 200,6 bilhões de 2021 para os atuais R$ 160,4 bilhões, conforme dados da pasta.

A partir de agora, o SUS lidará com a demanda regular de doenças de brasileiros, os atendimentos reprimidos nos últimos dois anos e as necessidades adicionais da pandemia – incluindo testagem, vacinação contra a covid-19, vigilância de casos, tratamento de doentes e atendimento a pacientes com sequelas da covid longa.

Para isso, o Ministério da Saúde terá apenas R$ 22,6 bilhões a mais do que no orçamento de 2019, antes da chegada do coronavírus. Contudo, entre janeiro de 2019 e dezembro de 2021, a inflação acumulada medida pelo IPCA foi de 20,63%, segundo dados da Calculadora do Cidadão do Banco Central.

A verba para o SUS neste ano contrasta ainda com cálculo de 2020 da Secretaria do Tesouro Nacional, órgão do Ministério da Economia, estimando que, devido ao envelhecimento populacional, o governo federal precisa aplicar mais R$ 50,7 bilhões em saúde até 2027.

Nos dois primeiros anos pandêmicos, o orçamento da Saúde fora turbinado com decretos extraordinários e a aprovação do decreto de calamidade pública, que flexibilizaram o teto de gastos. Todavia, as verbas de urgência não se repetem neste ano, e o cenário ameaça a qualidade dos serviços, alertam prefeituras e economistas.

A falta de recursos já é sentida na ponta e precariza serviços oferecidos à população relacionados à covid-19 e ao dia a dia do SUS, o que pode resultar, no futuro, em piora nos indicadores de saúde pública, alertam analistas.

— A pandemia não acabou em 31 de dezembro de 2021. A variante Ômicron demonstra que a covid não está superada no país, e isso demanda recursos. Ano a ano, alguns programas e ações estão sendo esvaziados, como a assistência farmacêutica, a atenção básica e o Saúde da Mulher. É preciso ter orçamento para recuperar o que foi represado em 2020 e o que já tinha em 2019. Ninguém defende o gasto público indiscriminado, mas tem que ser tirado de outras áreas, não da saúde e de políticas sociais, que historicamente têm orçamento curto — afirma Getúlio Vargas Júnior, coordenador-adjunto da Comissão Intersetorial de Orçamento e Financiamento do Conselho Nacional de Saúde (CNS).

O valor repassado à atenção primária (o que financia postos de saúde) passou de R$ 27,2 bilhões em 2019 para R$ 27,4 bilhões em 2020, crescimento de 0,7%, enquanto a inflação foi de 4,52%, ressalta Áquilas Mendes, professor de Economia Política da Saúde na Universidade de São Paulo (USP).

 — O SUS sempre foi subfinanciado, mas, desde a emenda constitucional 95 (sobre teto dos gastos), está sendo desfinanciado. O governo federal não coloca a mais. Com a pandemia, usa partes dos recursos exclusivos para a covid enquanto outras ações estão estancadas e caem em relação a orçamentos anteriores — diz Mendes.

Na última década, o investimento federal per capita em saúde pública também reduziu: passou de R$ 615 em 2014 para R$ 573 em 2020, segundo a Associação Brasileira de Economia da Saúde, que corrigiu os valores pela inflação – veja no gráfico.

 O economista Carlos Ocké, vice-presidente da entidade e pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), diz que o SUS desconcentra renda: a cada R$ 1 real investido em saúde, a sociedade recebe R$ 1,70 de volta — já que, com sistema de saúde de mais qualidade, famílias gastam menos em convênios e direcionam seu dinheiro a outros serviços e produtos.

— É em momento de estagnação da economia, com aumento da pobreza, que a população de baixa renda pede ajuda ao sistema, mas o gasto público per capita em saúde vem caindo. Há duas tendências hoje: redução do gasto público em saúde e, com a privatização do sistema, aumento do gasto das famílias e dos empregadores com saúde. O governo brasileiro insiste em política de austeridade fiscal em plena pandemia, enquanto a economia da saúde mostra que países que adotam austeridade fiscal deterioram o quadro clínico e epidemiológico de suas populações — diz Ocké.

 Mesmo sendo o único país do mundo com mais de 100 milhões de habitantes com sistema de saúde público, universal e gratuito, o Brasil investe menos do que nações em desenvolvimento, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS). A média dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), na qual o governo Jair Bolsonaro almeja entrar, é de 6,6%.

 O maior financiador do SUS é o Ministério da Saúde, mas Estados e municípios também entram com caixa próprio. Há, ainda, uma quarta fonte de verba, de contorno imprevisível: as emendas parlamentares. Esse dinheiro, nas mãos do Congresso, segue critérios de aplicação essencialmente políticos, não técnicos, aponta o Instituto de Estudos para Políticas de Saúde em estudo sobre o orçamento da saúde.

 Ano após ano, a participação do Ministério da Saúde no montante total de verbas aplicadas no sistema cai, como mostra cálculo do economista Francisco Funcia, vice-presidente da Associação Brasileira de Economia em Saúde. Se em 1991 a União contribuía com 73% do financiamento do SUS, em 2019 entrou com 43% da verba. Na esteira, Estados e prefeituras elevam os gastos para dar conta das necessidades de seus habitantes — apesar de o governo federal concentrar 69% dos impostos arrecadados no país.

— A União precisa aumentar o gasto porque ela tem mais bala na agulha no orçamento. A covid gerou novas demandas que não se sabe quanto custarão. Precisa fortalecer a atenção à saúde, contratar mais pessoas para contatar e isolar casos, por exemplo. Muito da verba da saúde vem de emendas parlamentares, mas elas não estão dentro do planejamento do SUS — afirma Funcia.

Quando prefeituras aumentam o gasto com SUS, sobra menos dinheiro municipal para políticas de saneamento básico e de assistência social, exemplifica o presidente do Conselho de Secretários Municipais da Saúde do Rio Grande do Sul (Cosems-RS), Maicon Lemos.

 — Municípios notam a cada ano um aumento no custo para manter Samu, unidades básicas de saúde e Unidades de Pronto-Atendimento. O reajuste federal está totalmente em descontinuidade com o custo real do serviço. Mas os custos dos profissionais e dos medicamentos aumentam, a população envelhece… Se não houver ajuste, vai ser difícil manter o SUS — afirma Lemos.

 Com menor participação federal, o SUS fica com menos dinheiro para contratar médicos, dentistas e agentes comunitários, o que eleva as filas para consultas, exames e cirurgias. São menos remédios oferecidos em farmácias populares e menos dinheiro para financiar leitos públicos também.

 Impossibilidade de testagem em massa, interrupção da abertura de novos postos de saúde e Unidades de Pronto-Atendimento e até menos ambulâncias da Samu em municípios são outras consequências, enumera Lemos.

— O município não pode ficar sem Samu funcionando, então aumenta a participação no financiamento. Só que há dificuldades financeiras, sobretudo na pandemia. É preciso reavaliar o financiamento do sistema — acrescenta o porta-voz do Cosems-RS.

 Lemos afirma ainda que a criação do programa Previne Brasil pelo governo Jair Bolsonaro, que altera o repasse de verbas da saúde a municípios para a atenção primária, está reduzindo o dinheiro distribuído pela União. Uma das métricas é o número de pessoas cadastradas em postos de saúde:

— Se antes os municípios recebiam pelo tamanho da população, hoje é pela produção apresentada pelo sistema. Mas os municípios não têm apoio para informatização do SUS e muitos têm dificuldade com internet. Às vezes, os municípios não conseguem exportar a informação porque o banco de dados do Ministério tem problemas, e acaba que, nos meses seguintes, há redução significativa no orçamento. Enquanto isso, o município entra com recurso próprio.

O impacto do SUS é medido por meio de indicadores de expectativa de vida, mortalidade infantil, doenças parasitárias e mortes evitáveis, que melhoraram expressivamente após a criação do programa. Mas, à medida em que o governo reduz o investimento no sistema, esses indicadores tendem a piorar, afirma Róber Iturriet Avila, professor de Economia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e diretor do Instituto Justiça Fiscal.

— O Brasil tem um modelo de proteção universal da saúde, mas quando você compara a composição do gasto público e do privado, o privado é levemente maior do que o público. Onde você encontra esse tipo de relação? Nos Estados Unidos, que têm um modelo liberal de sistema de saúde. No Brasil, o ovo está de cabeça para baixo — diz Avila.

Segundo especialistas em financiamento da saúde, desde que foi criado, na Constituição de 1988, o SUS recebe menos verba do que precisaria para funcionar. Mas após a criação do teto dos gastos, no governo Michel Temer, em 2017, o SUS passou a ser desfinanciado — ou seja, perder verba ano a ano.

Em linhas gerais, antes o Brasil precisava gastar 15% da receita da União em saúde. Mas a emenda constitucional 95 aprovada pelo governo Temer acabou com essa obrigação e limitou, até 2036, os gastos em saúde no patamar do investido em 2017, mais a correção da inflação. O argumento do Planalto era de que o Estado gasta demais e a arrecadação é insuficiente para bancar as despesas.

Segundo cálculo do Conselho Nacional de Saúde, a consequência foi que o governo federal reduziu os investimentos no SUS, que deixou de receber, entre 2018 e 2020, R$ 22,5 bilhões, sem considerar os recursos extraordinários da pandemia. Isso é mais do que as despesas em 2019 para estratégia de saúde da família, de R$ 15,7 bilhões. Até 2036, o CNS estima que o sistema de saúde pode deixar de ganhar R$ 400 bilhões devido às restrições da emenda.

Segundo Áquilas Mendes, da USP, há formas de aumentar o financiamento do SUS de forma sustentável, mesmo com a crise. Ele cita reduzir as renúncias fiscais para planos de saúde, reduzir o pagamento dos juros das dívidas da União e revogar o teto de gastos.

— Dinheiro há, a questão é opção política. A saúde não é prioridade. Quanto é a conta para ser sustentável? Basta comparar com países que têm saúde universal — diz o economista.

O Ministério da Saúde e a Secretaria Estadual da Saúde do Rio Grande do Sul foram contatados na sexta-feira (11) para posicionamento, mas não responderam até as 19h desta segunda-feira (14).

Fonte: Zero Hora