Setembro Amarelo: criar redes de afeto é recomendação de especialistas para lidar com angústias da pandemia

Setembro Amarelo: criar redes de afeto é recomendação de especialistas para lidar com angústias da pandemia

A Organização Mundial da Saúde (OMS) fez o alerta: a pandemia de coronavírus deve trazer, assim como ocorreu em outros grandes eventos traumáticos da humanidade, uma onda de sequelas emocionais. Doenças mentais como depressão, angústia, ansiedade e burnout, destacam especialistas, cresceram desde o início da covid-19. Mas há caminhos para alcançar bons desfechos.

Quase 70% dos médicos psiquiatras brasileiros receberam pacientes novos após o início da pandemia, mostra pesquisa da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) feita em maio em 23 Estados e no Distrito Federal. Cerca de 90% dos psiquiatras notaram piora no estado mental dos pacientes antigos.

— Somos um país de pessoas consideradas alegres e tranquilas, mas o Brasil é número 1 no mundo em transtorno de ansiedade e número dois em depressão. Isso é gatilho para aparecimento de doenças mentais graves. A pesquisa mostrou que pessoas que nunca apresentaram quadro psiquiátrico trouxeram queixas, e as que estavam em tratamento apresentaram recaída — diz o médico Antônio Geraldo da Silva, presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) e coordenador nacional da Campanha Setembro Amarelo, de combate ao suicídio.

Medo da morte e de perder parentes, isolamento, aumento de desemprego e pobreza, sobrecarga de trabalho e falta de perspectiva de futuro são prato cheio para o estresse, a grande causa de doenças mentais. Mesmo no cenário de curto prazo, nossa rotina é incerta: em uma semana, comércio e escolas abrem e, na seguinte, podem fechar.

A ansiedade é uma resposta, exagerada ou não, ao estresse: o cérebro entende que, por estarmos em terreno desconhecido, há risco de vida por causa de algum fator externo. Como resultado, passa a liberar cortisol e noradrenalina, neurotransmissores essenciais para uma resposta de luta ou fuga.

Relação social protege a saúde mental. Tendo relação constante com pessoas, você se protege contra problemas mentais. O que a gente pode fazer? Temos de usar a internet, Mandar mensagem é um ato seco, não tem expressão afetiva. Mas ligar por vídeo ou por voz traz expressão e entonação

ANTÔNIO GERALDO DA SILVA

Presidente da ABP e Coordenador nacional do Setembro Amarelo

Esses neurotransmissores, produzidos em excesso ao longo do tempo, atrapalham nossa cognição, memória e compreensão da realidade, explica Rosa Maria Martins de Almeida, professora de Psicologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e especialista em neurobiologia do comportamento.

— Muito cortisol atrapalha a amígdala cerebral, que avalia as situações. Começamos a fazer avaliações de forma inadequada: vemos uma coisinha e enxergamos um monstro. Quando o estresse é previsível, nossa resposta é uma. Mas, com muita incerteza, há ansiedade. Comprar comida pronta ou ir ao supermercado? Corremos o risco toda hora. Tudo é dilema agora, e isso traz angústia — pontua.

Cada pessoa é confrontada com dúvidas normalmente varridas para debaixo do tapete. Em vez de planejar mudanças de carreira, viagens e novos relacionamentos — cenários nos quais cultivamos nossa melhor versão —, obrigamo-nos a encarar o espelho e olhar para quem somos hoje, sem maquiagem.

— Precisamos de segurança para nos sentirmos bem, mas, nesta pandemia, tudo é muito novo e instável. Lidamos com os estresses da incerteza, do medo da doença e do isolamento social. Há, ainda, os estresses que estão por vir, relacionados a consequências econômicas e sociais, mais evidentes à medida que o auge da pandemia passar — afirma Maurício Kunz, chefe do serviço de Psiquiatria do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA).

A importância do “laço social”

Depressão, bipolaridade e dependência química são problemas tratáveis com o auxílio de médicos, psicólogos e, sobretudo, uma rede de afeto. O sociólogo Émile Durkheim criou, no século 19, o conceito de “laço social”: quanto maior nossa rede de apoio e relações, menores as chances de suicídio. O isolamento gera ansiedade e é fator de risco – estatisticamente, as taxas de suicídio são maiores entre solteiros e divorciados.

O grande desafio desta pandemia, alertam especialistas, é transformar o isolamento em solidão compartilhada. Em meio ao Setembro Amarelo, campanha nacional de alerta ao suicídio encabeçada pela Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) e pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), os riscos da pandemia à nossa saúde mental voltam à pauta.

Cerca de 12 mil pessoas se suicidam todos os anos no Brasil — em 2018, foram 1,2 mil gaúchos. O Rio Grande do Sul tem a maior taxa do país: 11,7 a cada 100 mil habitantes, quase o dobro da média nacional de 6,3, segundo a Secretaria Estadual da Saúde (SES).

— Temos a cultura do gaúcho valente aqui. Buscar ajuda para saúde mental é visto como frescura. O homem não deve expor seus sentimentos, não pode chorar porque é feio, procurar psicólogo é coisa de maluco. Se o gaúcho está triste e desmotivado, as pessoas falam mal, então ele não procura ajuda. Em muitos casos, a própria família não acredita que o homem cometeu suicídio — observa Andrea Volkner, do Centro Estadual de Vigilância em Saúde e do Comitê de Combate ao Suicídio do governo do Estado.

Somos um ser social. O contato físico libera oxitocina, muito importante para a emoção e o comportamento. Ela gera confiança e segurança. Quanto mais o contato, maior é o apego, mais essa substância é liberada, mais aumentam os receptores do cérebro e ficamos ligados aos outros

ROSA MARIA MARTINS DE ALMEIDA

Professora de Psicologia na UFRGS e pesquisadora de neurobiologia do comportamento, do estresse e das emoções

Outro ponto a ser considerado é que a pandemia traz sofrimento mental a todos, mas afeta de um jeito diferente a depender da idade. Idosos temem perder os últimos anos de vida em casa e morrerem (sozinhos) de coronavírus, enquanto jovens se tornam melancólicos (não aceitam a realidade) ao sentirem que vivem em suspenso e que a juventude está passando.

Maria Ângela Bulhões, psicóloga do Hospital Psiquiátrico São Pedro e membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (Appoa), destaca:

— Os jovens há muito tempo não tinham notícia de coisa tão catastrófica. Era um mundo globalizado e relativamente seguro, em um dinamismo onde tudo poderia acontecer. Mas, de repente, o mundo para. A fragilidade entra em causa e há um entristecimento para as grandes utopias de emancipação. Para quem é mais velho e não tem tanto tempo de vida, é como se perdesse momentos especiais de contato com o outro.

Pois contato, ainda que virtual, é um aliado vital, aponta Antônio Geraldo da Silva, coordenador nacional do Setembro Amarelo:

— Relação social protege a saúde mental. O que a gente pode fazer? Usar a internet, de preferência ligando por vídeo ou por voz, o que traz expressão e entonação.

Desigualdade também deve ser combatida

O contexto social, ainda que não seja determinante, pode influenciar: países mais pobres têm taxas de suicídio mais altas (e não países frios, como defende o senso comum). Isso é explicado pela psicologia social: uma sociedade desigual afeta a todos, inclusive os mais ricos.

Se pobres sofrem com baixos salários, desemprego e sobrecarga de trabalho, as classes média e alta sofrem pelo medo de sair na rua e de perder o emprego e pela pressão de trabalhar excessivamente para manter algum padrão de vida.

No livro The Nordic Theory of Everything: In Search of a Better Life (sem tradução para o português), a jornalista finlandesa Anu Partanen compara Finlândia a Estados Unidos em diferentes aspectos para explicar por que nações nórdicas são as mais felizes do mundo.

O fator mais premente é a baixa desigualdade social e a ampla rede de bem-estar social nos frios países do norte da Europa: em sociedades nas quais há pouca pobreza e o Estado auxilia a população para todos poderem competir no mesmo nível, cada indivíduo se sente livre para tomar as escolhas de vida que mais lhe apeteçam. Há, portanto, menos ansiedade em “dar errado” ou “acabar na pobreza”.

“Meus amigos na Finlândia podem planejar suas famílias sabendo que terão ampla licença parental (para pai e mãe), que a creche é boa e barata e que o sistema público de saúde vai tomar conta de todos. A energia gasta com as crianças pode ser focada em amá-los, não em trabalhar duro para comprar coisas”, escreve Anu.

No Brasil, o auxílio emergencial ajudou a população mais pobre a reduzir as preocupações com a subsistência, mas a preocupação de pacientes agora é com a redução para apenas R$ 300 nos próximos meses, conta o psiquiatra Ricardo Nogueira, coordenador de dois Centros de Atenção Psicossocial (Caps) de Porto Alegre — postos de saúde mental — e coordenador da ONG Centro de Promoção à Vida.

— O auxílio emergencial foi, mais do que um alívio, certa tranquilidade. Mas houve um aumento muito grande no uso de álcool e de drogas, e também cresceram os casos de agressão doméstica e de abuso — afirma Nogueira.

Como você pode ajudar

  • Muitas pessoas que cogitam o suicídio não querem necessariamente morrer, mas fugir de um sofrimento muito profundo. A relação com o tempo e a realidade é distorcida: sente-se que a dor vai durar para sempre, que não há saídas possíveis, que ninguém poderá ajudar.
  • A depressão que costuma caracterizar a angústia leva o indivíduo a crer que está isolado e sozinho no mundo — é a “redoma de vidro” citada pela escritora norte-americana Sylvia Plath. Mas, quando se recebe apoio psicológico, o desejo de suicídio enfraquece.
  • A nível macro, o Estado pode aumentar o número e contratar mais profissionais para Caps (postos de saúde mental do Sistema Único de Saúde) e investir em campanhas de prevenção ao suicídio, enquanto empresas podem oferecer auxilio psicológico aos funcionários — em um pensamento econômico, mente saudável rende mais.
  • A nível individual, terapeutas recomendam observar sinais de alerta (veja a seguir), oferecer apoio aos mais próximos e, para cuidar da própria saúde mental, valorizar as conquistas e os privilégios e focar no presente. Pequenos rituais prazerosos a cada dia ajudam a motivar em meio a um tempo de incerteza.
  • Uma janta bem preparada, um filme com a família, um livro lido com uma taça de vinho são pequenas experiências que evitam que a pandemia se torne apenas um mesmíssimo borrão de dias de trabalho, cuidado dos filhos e Netflix no sofá.
  • Falar sobre as ansiedades e temores com outras pessoas também ajuda _ é uma forma de fazermos, do isolamento, solidão compartilhada.
  • Psicólogos também orientam a adquirir consciência de que o tempo passa na pandemia, portanto não podemos viver em suspenso: o que você contará sobre esse período da vida no futuro? Não é questão de buscar uma doida produtividade diária, mas sim de evitar o pensamento de viver “à espera da vacina”.
  • Uma saída, diz a psicóloga Maria Ângela Bulhões, da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (Appoa), é se propor a estar junto no enfrentamento das dores. “Existir é solitário: ninguém sente o que tu sentes. O contato com o outro é que nos dá o sentimento de que compartilhamos.”

Fatores de risco

  •  Tentativa prévia de suicídio
  • Depressão
  • Bipolaridade
  • Vício em álcool ou drogas
  • Suicídio na família
  • Solidão

Sinais de alerta

  • Vontade de dar uma pausa na vida
  • Aumento do uso de álcool e de outras drogas
  • Desesperança, desinteresse, desamparo
  • Isolamento
  • Afastamento de amigos ou familiares
  • Despedidas
  • Falta de perspectiva de futuro
  • Demissão, separação ou perda de parentes podem ser gatilhos

Em adolescentes, fique de olho

Distorção na imagem corporal, tristeza constante, insegurança, problemas em se relacionar com outros adolescentes, crises de raiva, baixa autoestima, lesões que nunca cicatrizam (às vezes escondidas, nem sempre nos braços e pernas) e perda de cabelo em lugares específicos da cabeça.

O que fazer para melhorar a saúde mental

  • Privilegie ligações por vídeo ou voz em vez de mensagem em texto
  • Veja pessoas próximas com todos os cuidados, em locais abertos e com máscara
  • Expresse a religiosidade, seja na igreja, em yoga ou meditação
  • Pratique exercícios

Fontes: Cartilhas do Conselho Federal de Medicina (CFM) e da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP)

Para buscar ajuda

Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) do Sistema Único de Saúde (SUS)

  • São postos dedicados à saúde mental. Em Porto Alegre, veja a lista em gzh.rs/caps-gzh

Consultas a baixo custo

Instituto Wilfred Bion

  • Endereço: Rua Pedro Pieretti, 90, Jardim Botânico
  • Telefones: (51) 3319-7665| 9-9172-7977
  • R$ 55 na primeira consulta, depois valor é negociado com terapeuta

Fundação Universitária Mário Martins

  • Endereço: Rua Dona Laura, 185, Rio Branco
  • Telefones: (51) 3333-3266 e 98585-0120
  • R$ 80 a consulta

ITIPOA Psicanálise e Criatividade

  • Endereço: Rua Ramiro Barcelos 1517/208
  • Telefones: (51) 3311-3008 e 99926-2936
  • Valores abaixo do mercado conforme combinação com terapeuta

Instituto Cyro Martins

  • Endereço: R. Gen. Souza Doca, 70 _ Petrópolis
  • Telefone: (51) 3338-6041
  • A partir de R$ 25 com estagiários em Psicologia e R$ 70 com terapeutas formados

Grupo Wainer

  • Endereço: Rua Mathias José Bins, 1.510 _ Chácara das Pedras
  • Telefone: (51) 98152-0143
  • A partir de R$ 60

Fonte: Gaúcha ZH